Larroque, Patrice
Bibliografia
O REGIMENTO FANTÁSTICO

Por Victor Dazur35

Tomamos as passagens seguintes da apreciação crítica que o fez o Siècle da obra acima, em seu folhetim de 22 de junho de 1868:

“É uma espécie de romance filosófico, no qual a maior parte das questões que atualmente apaixona os espíritos é tratada sob uma forma original e dramática; o espiritualismo e o materialismo, a imortalidade da alma e o nada, o livre-arbítrio e o fatalismo, a responsabilidade e a irresponsabilidade, as penas eternas e a expiação, depois a guerra, a paz universal, os exércitos permanentes, etc.

35 Um grosso volume in-12. Preço: 3 fr. 50 c.; pelo correio: 4 fr. Esta obra foi impressa em Lyon e não traz nenhum nome do editor; diz apenas que se encontra em todos os livreiros de Paris. Nós a adquirimos na Livraria Internacional, 15, boulevard Montmartre.

“Nem todas essas questões são discutidas com bastante método e profundeza, mas todas o são com uma certa erudição, com evidente boa-fé, quase sempre com graça, muitas vezes com espírito e por vezes com eloqüência.

“Em suma, a obra é de um homem liberal, amigo do progresso, da perfectibilidade e do espiritualismo, amigo da paz, embora evidentemente militar.

“Aliás, eis como o autor fala de si mesmo:

“O autor, que neste livro tomou o nome de François Pamphile, tinha a insigne honra de ser cabo no exército francês, quando teve o estranho sonho que constitui o plano da obra que ides ler, se não tiverdes nada melhor para fazer. Mais tarde o nosso militar escreveu o seu sonho e depois se divertiu em o embelezar quando dispunha de tempo.”

“O Regimento Fantástico, de Victor Dazur, é, pois, um sonho, como o Paris na América, do Sr. Laboulaye, mas é um sonho que vos transporta a um mundo completamente imaginário.

“O cabo François Pamphile entra em sua caserna, depois de ter participado, com alguns camaradas, dos prazeres de uma festa pública em Paris. Saturado de barulho, de música, de espetáculos ao ar-livre, de iluminações, de fogos de artifício, o estômago bem cheio e a consciência tranqüila, não tendo querela com ninguém, nem ferindo com seu sabre a nenhum civil, cai em profundo sono. Ao cabo de um tempo que não pode avaliar, parece-lhe que seu leito é levantado, como se estivesse suspenso a um balão, à guisa de nacela.

“Abre os olhos e se vê no espaço; um panorama móvel se desdobra abaixo dele; vê desaparecer Paris, depois o campo, a Terra. Parece-lhe fazer um das viagens aerostáticas do nosso colaborador Flammarion, de quem se declara assíduo leitor, e do qual louva com entusiasmo o belo livro espiritualista que tem por título a Pluralidade dos Mundos Habitados.

“De repente, falta-lhe o ar; sufoca; mas entra numa outra atmosfera; retoma a respiração; percebe um outro globo, que seus estudos astronômicos o fazem reconhecer como o planeta Marte. Sente-se atraído para este planeta, cujo globo cresce rapidamente aos seus olhos. Treme, nele caindo por força das leis da gravidade, temeroso de ser esmagado. Receia um choque terrível; mas não! Ei-lo estendido sobre uma espessa relva, aos pés de árvores maravilhosas, cheias de pássaros não menos maravilhosos.

“Julga-se num mundo novo, passado do grau de cabo ao de primeiro homem. Chama uma Eva. É a canção do Rei Dagoberto que lhe responde.

“A admiração do bom cabo redobra ao ver que o cantor é um grande folgazão, revestido com o uniforme de sargento-mor da infantaria de linha francesa.

“– Quem sois vós? perguntou o sargento, com o ar tão surpreso quanto ele.

“– Major, responde François Pamphile, sou o cabo; venho do planeta Terra, que deixei involuntariamente esta noite; e gostaria que me dissésseis o nome do planeta onde caí.

“– Por Deus! Este planeta é Soraï-Kanor.

“– Soraï-Kanor?... Eu supunha que fosse o planeta Marte. Parece que me enganei.

“– Não vos enganastes. Apenas nosso planeta, que os terrícolas chamam Marte, é chamado por nossos astrônomos de Soraï-Kanor.

“O cabo admira-se de que o sargento saiba o nome dado pelos habitantes da Terra ao seu planeta. Mas o sargento lhe disse que só deixou a Terra depois de sua morte terrestre e que lá era rei da França.

“A esta resposta inesperada, o cabo se descobre, isto é, tira o boné de algodão que tem sobre a cabeça.

“O rei sargento-mor lhe diz que não lhe preste tantas honras, pois que não passa de um simples sub-oficial. Na Terra ele se chamava Francisco I; em Marte ele pertence ao regimento fantástico, um regimento composto da maioria dos soberanos que reinaram no globo terrestre. O coronel é Alexandre, o Grande; o tenente-coronel, Júlio César (que, a bem dizer, não reinou), e o major, Péricles (que reinou menos ainda). O regimento conta três batalhões, e cada batalhão oito companhias. O comandante do primeiro batalhão é Sesóstris, e o subcomandante Átila; O comandante do segundo batalhão, Carlos Magno, e o subcomandante, Carlos V; o comandante do terceiro batalhão, Aníbal, e o subcomandante, Mitrídates.

“Cada companhia é composta dos soberanos de uma mesma nação. A companhia francesa é a primeira do segundo batalhão e tem como capitão Luís XIV, o que prova, possivelmente, que o favor domina em Marte, como na Terra; porque Francisco I, que é apenas sargento-mor, seguramente era maior capitão que Luís XIV, e ainda tinha a ancianidade a seu favor.

“As cantineiras do regimento fantástico são Semíramis, Cleópatra, Elisabeth, Catarina II. Assim como todos os oficiais e soldados do regimento são antigos soberanos ou homens que exerceram a soberania, todas as cantineiras e as servas da cantina são antigas soberanas. Os músicos são antigos compositores: Beethoven, Mozart, Glück, Piccini, Haydn, Bellini. O regimento não adotou o uniforme francês senão depois do reinado de Napoleão I, cujas campanhas entusiasmaram Alexandre, o Grande. Depois, o regimento seguiu todas as variações de nosso costume militar, o que não diz pouco. Foi também a partir do reinado de Napoleão I que a língua francesa foi adotada como língua regulamentar do regimento. Contudo, não foi sob o Império que a língua francesa brilhou mais. Aliás o vencedor de Austerlitz não está no número dos militares do regimento fantástico. Não está em Marte; talvez esteja num mundo superior, talvez num mundo inferior: Francisco I o ignora.

“Outros soberanos jamais figuraram no regimento fantástico; outros o deixaram após milhares de séculos de serviços. O regimento nunca muda de guarnição e jamais faz guerra. É uma espécie de regimento penitenciário no qual os soberanos, homens e mulheres, são postos para expiar os crimes que cometeram em seus reinados.

“Ainda bem; mas os músicos Beethoven, Mozart e os outros, que crimes cometeram para serem retidos nesse regimento expiatório? É o que o autor esquece de explicar.

“O suplício habitual dos militares e das cantineiras do regimento é o suplício de Tântalo. Os guerreiros que, na Terra, se compraziam no sangue e na carnificina, guardaram seus instintos belicosos, que o som do clarim desperta sem cessar e que os exercícios e os simulacros de combate superexcitam, sem que jamais lhes seja possível satisfazer, porquanto o poder divino, que na Terra permite a guerra, o interdita em Marte.

“Os voluptuosos e as voluptuosas sofrem um suplício semelhante. Todos, homens e mulheres, conservam a beleza de que gozavam na época mais bela de sua vida, mas estão submetidos a uma condição fisiológica que os condena a uma castidade absoluta.

“Outro castigo, que os desola ainda mais, é o suplício das lembranças. Uma memória extraordinariamente lúcida lhes recorda os atos de sua vida terrestre. Só uma ocupação contínua os distrai; mas a disciplina é rigorosa; a cada instante são condenados à sala de polícia, à prisão ou à sala das lembranças. Na sala de polícia
e na prisão ainda lhes permitem algumas distrações, mas na sala das lembranças não lhes permitem nenhuma. Lá se encontram encerrados no meio de todos os instrumentos de suplício e de tortura empregados em seus reinados; nas paredes são pintados a fresco todos os sofrimentos e todos os assassínios ordenados pelos reis.

“Quando Luís XI está encarcerado na sala das lembranças, é posto numa gaiola de ferro, em uso no seu reinado, e colocado em frente ao cadafalso de Nemours, do qual o sangue goteja sobre a cabeça de seus filhos. Felipe, o Belo, é estendido sobre uma fogueira, de onde vê os suplícios dos templários. Fernando, o Católico, é amarrado a um cavalete, com a cabeça voltada para um auto-de-fé.

“Nosso cabo ouve Nero se queixar nestes termos ao seu camarada Calígula:

“– Três quartos do tempo sou punido com detenção ou na sala de polícia. Se reclamo contra uma punição, esta me é aumentada. Quando não estou na sala de polícia, estou no pelotão de castigo, e quando não estou no pelotão de castigo, estou na faxina do quartel. Enfim, sou acabrunhado por vexames de toda espécie, sem contar meus outros sofrimentos. Isto já dura muitos séculos. Quando acabará?”

“– Mas este vosso regimento fantástico é um inferno, diz o bom Pamphile a Francisco I.

“– Não, responde-lhe este, porque as penas aqui não são eternas. O Grande Desconhecido, que é a justiça suprema, não profere condenações eternas, uma vez que faltas finitas, por maiores que fossem, não poderiam acarretar penas infinitas. Nosso planeta e alguns outros não são infernos, mas purgatórios, onde os homens, numa ou em várias existências sucessivas, pagam as dívidas morais que contraíram numa existência anterior.

“Conversando assim, ora com o sargento-mor Francisco I, ora com o simples soldado Carlos V, ora com seu colega, o cabo Carlos VII, o cabo Pamphile recebe instruções e revelações sobre o que interessa à Humanidade no mais alto grau. Enfim, numa audiência que lhe concede o coronel Alexandre, o Grande, no círculo dos oficiais, o antigo conquistador lhe expõe um projeto de congresso internacional universal, encarregando-o de o propor à Terra, a fim de estabelecer, para sempre, em nosso globo, a paz, a concórdia e a fraternidade.

“Meu coronel, exclama Pamphile entusiasmado, vosso projeto é tão lógico, parece-me de tal modo indispensável e a idéia em si é tão natural, que me parece que assim que for conhecido na Terra todos dirão: Como é possível que não se tenha pensado mais cedo em estabelecer um congresso universal?

“Em que pese a esperança do bom cabo, duvidamos que os diferentes governos do nosso planeta se apressem em acolher o projeto de Alexandre; mas o congresso da paz, que se reunirá em Berna em setembro próximo, não pode deixar de o levar em consideração. Nós o recomendamos especialmente ao relator encarregado de estudar qual poderia ser a constituição dos Estados Unidos da Europa.” 36

E.-D. de Biéville

36 N. do T.: Notável previsão do surgimento da Comunidade Econômica Européia, instituição criada pelo Tratado de Roma, em 1957, e que hoje agrupa boa parte dos países europeus. De fato, a circulação de mercadorias e de naturais desses países é livre, já circula uma moeda comum, o euro, e já se parte para a elaboração de uma constituição supra-nacional que contemple os interesses coletivos do povo europeu. Assim, muitos sonhos dos chamados “visionários” não passam da antecipação de fatos que se verificarão num futuro mais ou menos remoto, atestando a realidade da lei do progresso ou de evolução, um dos princípios fundamentais do Espiritismo.

Se o Sr. Victor Dazu (por certo esse nome deve ser um pseudônimo) inspirou-se na Pluralidade dos Mundos Habitados, do Sr. Flammarion, do qual se declara leitor assíduo, também respigou largamente nas obras espíritas. Salvo o quadro de que se serviu, sua teoria filosófica das penas futuras, da pluralidade das existências, do estado dos Espíritos desprendidos do corpo, da responsabilidade moral, etc., evidentemente é colhida na Doutrina Espírita, da qual não só reproduz a idéia, mas, muitas vezes, até a forma.

As passagens seguintes não podem deixar dúvida sobre este ponto:

“Tu sonhas, meu amigo, pensei eu; tu sonhas! Todos esses soberanos da Terra, que recomeçam uma nova existência no planeta Marte, esse gênio diáfano e de asas azuis, tudo isto cheira a Espiritismo... E, contudo, quando estás desperto, não acreditas nessa invenção. Depois, dirigindo-me a Francisco I, eu lhe disse:

“– Major, vem-me ao espírito uma idéia singular; esta idéia me faz supor que tudo quanto vejo e tudo quanto ouço, desde que aqui cheguei, não passa do efeito de um sonho. Dizei, por favor, a vossa opinião. Pensais, como eu, que eu sonho?

“– Mas não! não sonhais, respondeu-me Francisco I com um ar tão indignado como se eu lhe tivesse feito uma pergunta muito estúpida. Não, não sonhais! Se sonhásseis, desfilariam diante do vosso espírito uma porção de quimeras sem pé nem cabeça. Os acontecimentos de que sereis testemunha não teriam entre si nenhuma relação razoável.

“– Mas não é tudo, major. O que ainda me faz crer que sonho, é que me apalpei e não encontrei o corpo... Apalpo-me ainda agora, e também não me encontro. Todavia, sinto-me viver e me vejo braços e pernas. Desnecessário dizer que sendo impalpáveis esses braços e pernas, não passam de aparências fantásticas. Eu bem poderia explicar essas aparências, mas para isto seria preciso, a mim que não creio no Espiritismo, admitir certa teoria espírita que, verdadeira ou falsa, é, em todo o caso, muito engenhosa.

“Essa teoria pretende que o Espírito de um corpo é rodeado de um perispírito, isto é, de um invólucro semimaterial, que pode tomar a forma desse corpo e tornar-se visível em certos casos. Uma vez admitido o perispírito, a mesma teoria pretende que um indivíduo pode ser visto algumas vezes e no mesmo instante em dois lugares, mesmo muito afastados um do outro, o corpo dormindo num lugar e a aparência do corpo, isto é, o perispírito, agindo em outra parte.

“Se esta asserção é verdadeira, eu estaria pondo em prática a teoria de que acabo de falar. Poder-se-ia ver neste momento meu corpo a dormir em Paris, enquanto vedes o meu perispírito como se fosse o meu corpo. Mas eu só acreditaria numa coisa tão extraordinária se ela fosse provada.

“Seria ainda adotar o Espiritismo, que admite como real essa reunião de potentados, realizada aqui, como pretendem, para expiar os erros que cometeram quando estavam na Terra.

“– Se quiserdes, disse-me Francisco I, não acrediteis no que tendes diante dos olhos. Suponde por um momento que, em vez de estar neste planeta, estejais no domínio ideal da razão, e dizei-me se acreditais que os homens que fazem o mal, seja qual for a sua posição na sociedade, podem estar isentos do purgatório depois de sua vida terrena? – Major, não sei que responder. – Mas eu sei o que pensais. Pensais que o purgatório existe, não importa onde, mas apenas para as pessoas que ocupam os graus mais elevados da escala social. E o que vos leva a pensar assim, é que as faltas das pessoas altamente colocadas no mundo são muito mais aparentes que as dos simples particulares. Mas ides modificar imediatamente esta idéia, pensando que, para o Ser Supremo, não há faltas ocultas. Com efeito, o Grande Desconhecido vê constantemente na Terra simples particulares que, relativamente, fazem tanto mal na sua pequena esfera de ação, quanto o fazem, em seus Estados, certos tiranos manchados pela História. Os simples particulares de que falo, em vez de exercerem sua tirania num reino, a exercem em sua família e em seu círculo, fazendo sofrer sem piedade mulher, filhos e subordinados. Esses tiranetes só têm uma preocupação: gozar a vida, escapando ao código penal do país em que habitam. Ora, eu vos pergunto, credes que esses malfeitores, que às vezes passam por criaturas virtuosas, aos olhos de quem quer que não lhes conheça a vida, digo eu, que esses malfazejos logo sejam transportados a uma morada de delícias? – Não, não creio. – Não admitis que, fazendo o mal, contraíram uma certa dívida moral? – Sim, major, eu o admito. – Pois bem! então não vos deveis admirar de que certos planetas sejam verdadeiros
purgatórios, nos quais os homens, em uma ou em várias existências, paguem as dívidas contraídas numa existência anterior.

“– Mas, major, os sofrimentos que todo homem experimenta no curso de sua vida não pagam suficientemente o mal que pode fazer desde a idade da razão até a morte?

“Isto só se daria com pequeno número de indivíduos, porque, o mais das vezes, o mal que um homem faz recai sobre certo número de seus semelhantes, o multiplica tanto mais a soma do mal pessoal e torna quase sempre a dívida tão grande que esse homem não poderia pagá-la no decorrer de sua curta existência. Ora, quando não se pôde pagar suas dívidas numa vida, forçosamente se deve pagá-las em outra, porquanto, no caso de dívidas criminais, o Grande Desconhecido dispôs as coisas de maneira que não haja bancarrota possível.

“Admitido isto, admitireis também que é impossível que monstros como Nero, Calígula, Heliogábulo, Bórgia e tantos outros, cujos crimes não podem ser enumerados, tenham podido pagar semelhantes dívidas pelo pouco mal que sofreram em vida. Ora, de duas uma: Ou esses homens caíram no nada, ao morrerem, ou recomeçaram uma nova existência. Se se admitir que tivessem caído no nada, admite-se muito naturalmente que devem ter fracassado completamente. Convireis que a idéia de semelhante bancarrota revolta o espírito, ao passo que se se admitir que cada um recomeçou uma nova existência, o espírito se acha satisfeito ao pensar que essas novas vidas não poderão ser senão existências de expiação ou, melhor dizendo, de purificação.37

“– Major, não é mais simples admitir a danação eterna para os monstros de que falais? – Convenho que é mais simples, mas não mais lógico. A lógica, que deve ser a alma da justiça, recusa admitir a danação eterna, porque faltas finitas não poderiam merecer castigos infinitos.”

Segue uma dissertação das mais interessantes e das mais lógicas que lemos contra o inferno e as penas eternas, sobre a justiça da proporcionalidade das penas e sobre a doutrina do trabalho, mas a sua extensão não nos permite reproduzi-la.

“– Major, diz o cabo Pamphile, eu vos farei notar que a negação do inferno eterno, assim como a proporcionalidade das penas, é o fundo mesmo da doutrina dos espíritas. Ora, eu já vos disse que não creio no Espiritismo. – Então... acreditai no inferno eterno, se isto vos dá prazer.”

37 Se o efeito da injustiça ou do mal que um homem comete em relação a um outro homem detém-se no indivíduo, a necessidade da reparação será individual; mas se, em conseqüência, esse mal prejudica pouco a pouco a centenas de indivíduos, sua dívida será centuplicada, porque serão centenas de reparações a realizar. Quanto mais vítimas tiver feito, direta ou indiretamente, maior o número dos que lhe pedirão contas de sua conduta. Como a responsabilidade e o número de reparações aumentam com a extensão da autoridade de que se é investido, somos responsáveis por indivíduos que jamais conhecemos, mas que, nem por isso, sofreram menos as conseqüências dos nossos atos.

Entre os soberanos que o cabo Pamphile encontra no planeta Marte, há os que viviam no tempo do dilúvio, reis da Assíria, ao tempo da torre de Babel, faraós do tempo da passagem do mar Vermelho pelos hebreus, etc. E cada um dá sobre esses acontecimentos explicações que, em sua maioria, têm o mérito, se não da prova material, ao menos o da lógica.

Em suma, o quadro escolhido pelo autor para emitir suas idéias é feliz, até mesmo a sua negação do Espiritismo, que leva, em última análise, a uma afirmação indireta. Diremos, como o Siècle, que sob uma forma aparentemente leve, todas as questões aí são tratadas com certa erudição, com evidente boa-fé, quase sempre com graça, muitas vezes com espírito e por vezes com eloqüência. Acrescentaremos que, não conhecendo o autor, se este número lhe cair nas mãos, desejamos que aqui encontre a expressão de nossas sinceras felicitações, porque fez um livro interessante e muito útil.

CONFERÊNCIAS SOBRE A ALMA

Pelo Sr. Alexandre Chaseray38

São inumeráveis as obras modernas nas quais o princípio da pluralidade das existências é afirmado casualmente. Mas a de que falamos nos parece uma destas em que ele é tratado da maneira mais completa. O autor se empenha, além disso, em demonstrar que a idéia cresce e se impõe cada dia mais aos espíritos esclarecidos.

Nos fragmentos que transcrevemos a seguir, as notas são do autor.

“A transmigração das almas, diz o Sr. Chaseray, é uma idéia filosófica ao mesmo tempo das mais antigas e das mais novas. 38 Pequeno volume in-12. Preço: 1 fr. 50; pelo correio, 1 fr. 75. Casa Germer-Baillière, 17, rue de l’École-de-médecine. A metempsicose constitui o fundo da religião dos hindus, religião muito anterior ao judaísmo, e Pitágoras pôde receber esta crença dos Brâmanes, a ser verdade que ele tenha estado na Índia; mas é mais provável que a tenha trazido do Egito, onde viveu muito tempo. A civilização reinava às margens do Nilo alguns milhares de anos antes do nascimento de Moisés e, no dizer de Heródoto, os sacerdotes egípcios foram os primeiros a anunciar que a alma é imortal e que passa sucessivamente por todas as espécies de animais, antes de entrar num corpo humano.

“Por seu lado, os gregos jamais abandonaram completamente a metempsicose. Os que entre eles não admitiam por inteiro a doutrina de Pitágoras, acreditavam vagamente com Platão que a alma imortal tinha existido em algum lugar, antes de
se manifestar sob a forma humana, ou acreditavam no rio Letes e no renascimento do homem na Humanidade. Entre os primeiros cristãos, muitos neófitos entendiam conservar de seus antigos dogmas o que lhes parecia bom; os maniqueus, por exemplo, tinham conservado os dois princípios do bem e do mal e a migração das almas; é assim que, vindo os heresiarcas a se multiplicarem, os Pais e os Concílios tiveram muito a fazer para reconduzir os espíritos a uma fé uniforme. Definitivamente vitoriosa, a Igreja apostólica baniu de seu império a metempsicose, que foi substituída pelo dogma do julgamento irrevogável e da divisão dos homens em eleitos e danados. O purgatório foi introduzido mais tarde, como corretivo de uma decisão extremamente inflexível.

“Assim como não considerei muito como um progresso o espiritualismo de Santo Tomás, do qual não se vê nenhum traço nos livros santos, também ainda não julgo feliz, nem conforme a antiga doutrina do pecado original, que estabelece uma
solidariedade tão estreita entre todas as gerações de homens, a afirmação dogmática que consiste em dizer que a existência de cada um de nós não tem raízes no passado e conduz a um paraíso ou a um inferno eternos. Em minha opinião, eis aí uma heresia filosófica, contra a qual o espírito moderno reage com força.

“Reaparece de todas as partes a transmigração das almas. Mas, em nossos dias, geralmente se concebe uma metempsicose mais larga do que aquela cuja crença atribuíam aos Antigos. O espírito de indução, tendo transposto os limites da Terra, e reconhecido nos sóis e nos planetas mundos habitados, não mais limitou os destinos do homem ao globo terrestre. Em lugar de ver a alma percorrendo incessantemente o círculo das plantas, dos animais e da espécie humana, ou renascendo constantemente na Humanidade, foi possível imaginá-la alçando seu vôo para mundos infinitos.39

“Não tenho senão o embaraço da escolha no caso de citações, para mostrar que a fé tem uma série de existências, umas anteriores, outras posteriores à vida presente, crescendo e se impondo cada dia mais aos espíritos esclarecidos.

“Comecemos por Jean Reynaud. Esse filósofo insiste na ligação natural que apresentam as duas idéias de preexistência e de vida futura.

39 Era tão natural aproveitar a oportunidade gloriosa aberta à alma pelas descobertas astronômicas, que não posso crer que a metempsicose de  Pitágoras tenha sido realmente o que dela pensava o vulgo. Porque Pitágoras conhecia o verdadeiro sistema do mundo; o duplo movimento de rotação e de translação da Terra; a imobilidade relativa do Sol; a importância das estrelas fixas, cada uma das quais é um Sol e o centro de um grupo de planetas, muito provavelmente habitados; a marcha e a volta dos cometas: nada de tudo isto era ignorado por Pitágoras. Esse filósofo, instruído pelos sábios sacerdotes egípcios, que não revelavam seus segredos senão a um pequeno número de iniciados, julgou por bem dever, a exemplo deles, guardar segredo sobre esta parte de sua ciência. Um de seus discípulos, menos escrupuloso, a divulgou; mas como faltaram as provas e as verdades se achavam perdidas no meio de erros e de divagações místicas, a
revelação passou despercebida. Não basta emitir uma idéia justa; é preciso saber fazer aceitá-la. Assim, Copérnico e Galileu, os vulgarizadores do verdadeiro sistema cosmológico, são considerados como os seus inventores, embora a noção primeira se perca na noite dos tempos.

“Se se examinasse, diz ele, todos os homens que passaram sobre a Terra, desde que a era das religiões cultas aí começou, ver-se-ia que a grande maioria viveu na consciência mais ou menos fixa de uma existência prolongada por vias invisíveis, aquém e além dos limites desta vida. Com efeito, aí há uma espécie de simetria tão lógica que deve ter seduzido as imaginações à primeira vista; o passado aí faz equilíbrio ao futuro, e o presente não é senão o pivô entre o que já não é e o que ainda não é. O platonismo despertou esta luz precedentemente agitada por Pitágoras e dela se serviu para esclarecer as mais belas almas que honraram os tempos antigos.40

“Esse julgamento de Jean Reynaud se acha plenamente confirmado pela nota seguinte de Lagrange, o elegante tradutor do poema de Lucrécia:

“De todos os filósofos que viveram antes do Cristianismo, nenhum sustentou a imortalidade da alma sem estabelecer previamente a sua preexistência; um desses dogmas era considerado como conseqüência natural do outro. Acreditava-se que a alma devia existir sempre, porque sempre tinha existido; e, ao contrário, estavam persuadidos de que, concordando que ela tinha sido gerada com o corpo, não se tinha mais o direito de negar que ela devesse morrer com ele. ‘– Nossa alma, diz Platão, existia em algum lugar antes de estar nesta forma de homens; eis por que não duvido que ela seja imortal.’

“O velho druidismo, prossegue o autor de Terra e Céu, fala ao meu coração. Esse mesmo solo que hoje habitamos comportou antes de nós um povo de heróis, que estavam todos habituados a se considerar como tendo experimentado o Universo
de longa data, antes de sua encarnação atual, fundando assim a esperança de sua imortalidade na convicção de sua preexistência.”

40 Terra e Céu.

“Um dos nossos melhores historiadores também faz rasgados elogios ao principal ensino dos druidas; Henri Martin é de opinião que os nossos pais, os gauleses, representavam no mundo antigo ‘a mais firme, a mais clara noção da imortalidade que jamais houve.’41

“Por sua vez, diz Eugène Sue sobre a fé druídica:

“Segundo esta crença sublime, o homem imortal, espírito e matéria, vindo de baixo e indo para o alto, transitava por esta Terra, aqui habitava passageiramente, como tinha habitado e devia habitar essas outras esferas que brilham, inumeráveis, no meio dos abismos do espaço.”42

“Já no século dezessete dizia Cyrano de Bergerac, a exemplo dos sacerdotes gauleses:

“Morremos mais de uma vez; e como não somos senão partes deste Universo, mudamos de forma para retomar a vida alhures, o que não é um mal, mas um caminho para aperfeiçoar o ser e para chegar a um número infinito de conhecimentos.”

“Vários de nossos contemporâneos, contudo, sem parecer inspirar-se nos druidas, também anunciam que o destino da alma é viajar de mundos a mundos.

41 Histoire de France, 4a edição, tomo I.
42 (Folhetim da Presse, de 19 de outubro de 1854).
Nem todos os autores antigos desconheceram o lado belo da religião dos druidas, como testemunham esses versos de Lucain:
Vobis auctoribus, umbrae
Non tacitas Erebi sedes, Ditisque profundi
Pallida regna petunt: regit idem spiritus artus
Orbe alio: longae (canitis si cognita) vitae
Mors media est.
“Segundo vós, druidas, as sombras não descem às silenciosas regiões do Erebo, aos pálidos reinos do deus do abismo. O mesmo Espírito anima um novo corpo em outra esfera. A morte (se os vossos hinos contêm a verdade) é o meio de uma longa vida.”

“Lê-se, por exemplo, na Profissão de fé do século dezenove, de Eugène Pelletan:

“Pela irresistível lógica da idéia, creio poder afirmar que a vida mortal terá o espaço infinito como lugar de peregrinação... O homem irá, pois, sempre de sol a sol, subindo sempre, como na escada de Jacó, a hierarquia da existência, passando sempre, segundo seu mérito e o seu progresso, de homem a anjo, de anjo a arcanjo.”

“E na Renovação Religiosa, do Sr. Patrice Larroque, antigo reitor da Academia:

“Pode-se conjecturar que a maior parte dos outros globos que se movem no espaço, alberguem, como na Terra, seres organizados e animados, e que esses globos sejam os sucessivos teatros de nossas vidas futuras.”

“Lamennais exprime a idéia do renascimento de uma maneira absolutamente precisa, embora mais restrita: Diz ele: “Estando realizado o progresso possível ao
indivíduo sob sua forma orgânica atual, ele devolve à massa elementar esse organismo gasto, revestindo um outro mais perfeito.”43

“Assinalemos, ainda, o traço seguinte do discurso pronunciado pelo Sr. Guéroult, do Opinion nationale, junto ao túmulo do pai Enfantin:

“Ninguém foi mais religioso que Enfantin; ninguém viveu tanto quanto ele em presença da vida eterna, da qual esta vida, que nos escapa a cada instante, não é senão uma das inumeráveis etapas.

43 Da sociedade primitiva e de suas leis, livro III.

“Um dos nossos mais célebres romancistas dá a pensar que acredita na passagem dos seres inferiores nas espécies superiores e, nomeadamente, dos animais à Humanidade:

“Explique quem quiser, diz George Sand, essas afinidades entre o homem e certos seres secundários da Criação. Elas são tão reais quanto as antipatias e os terrores insuperáveis que nos inspiram certos animais inofensivos... É talvez que todos os tipos, repartidos cada um especialmente em cada raça de animais, se encontrem no homem. Os fisionomistas têm constatado semelhanças físicas; quem pode negar as semelhanças morais? Não há entre nós raposas, lobos, leões, águias, besouros e moscas? A grosseria humana é muitas vezes baixa e feroz, como o apetite do porco...”

“George Sand se mostra mais explícita a respeito da migração das almas, nas seguintes linhas da mesma obra:44

“Se não devemos aspirar à beatitude dos Espíritos puros da região das quimeras, se devemos sempre entrever, além desta vida, um trabalho, um dever, provações e uma organização limitada em suas faculdades em frente ao infinito, pelo menos nos é permitido pela razão e nos é ordenado pelo coração, contar com uma série de existências progressivas, em razão dos nossos bons desejos... Podemos considerar esta Terra como um lugar de passagem e contar com um despertar mais suave no berço que nos espera alhures. De mundos em mundos, podemos, desprendendonos da animalidade que aqui neste mundo combate o nosso espiritualismo, tornar-nos próprios para revestir um corpo mais  puro, mais adequado às necessidades da alma, menos combatido e menos entravado pelas enfermidades da vida humana, tal qual a suportamos na Terra.

“Citemos ainda um romancista, Balzac. Os romancistas desta ordem, assim como os poetas excepcionais, abordam as mais 44 História de minha vida. elevadas questões e sabem semear traços profundos em seus escritos de uma forma leve e agradável. É assim que em Os Miseráveis, Victor Hugo deixa cair de sua pena esta vaga interrogação: ‘De onde viemos? é bem certo que nada fizemos antes de termos nascido?’ É somente pensando nisto, e sem idéia preconcebida de sustentar uma tese filosófica, que o autor da Comédia Humana fala das existências sucessivas. Por isso não posso senão captar este pensamento em vários de seus romances.

“Eis, por exemplo, algumas linhas de O lírio do vale:

“O homem é composto de matéria e de espírito; a animalidade vem terminar nele e nele começa o anjo. Daí essa luta que experimentamos todos entre um destino futuro, que pressentimos, e as lembranças de nossos instintos exteriores, dos quais não nos desligamos inteiramente: um amor carnal e um amor divino.”

“E encontro em Séraphita, esse romance místico, no qual Balzac expõe com um interesse e um encanto tão poderosos a doutrina religiosa do sueco Swedenborg:

“As qualidades adquiridas e que se desenvolvem lentamente em nós são laços invisíveis que ligam cada uma de nossas existências uma à outra.

“Enfim, nos Comediantes sem o saber, a sibila, senhora Fontaine, pergunta a Gazonal:

“– Que flor amais?

“– A rosa.

“– De que cor gostais?

“– Do azul.

“– Que animal preferis?

“– O cavalo. Por que estas perguntas? pergunta ele por sua vez.

“– O homem se liga a todas as formas por seus estados anteriores, diz ela sentenciosamente; daí vêm os seus instintos, e os seus instintos dominam o seu destino.”

“Michelet testemunha sua simpatia pelas mesmas idéias, quando chama o cão um candidato à Humanidade, e quando diz, falando dos pássaros:

“Que são eles? almas esboçadas, almas especializadas ainda em tais funções da existência, candidatos à vida mais geral e mais vastamente harmônica, a que chegou a alma humana.’45

“Pierre Leroux não crê que o homem tenha passado pelos tipos inferiores dos animais e das plantas. Segundo ele, os indivíduos se perpetuam no seio da espécie e o homem renasce indefinidamente na Humanidade. A solidariedade entre todos os membros da família humana então é evidente; o bem que um homem faz aos seus semelhantes redunda em seu proveito, desde que deles não se separa pela morte, senão para logo voltar a misturar-se a eles. Sustentando a perpetuidade do ser no seio da espécie, Pierre Leroux afasta-se dos autores que acabo de citar e não encontra muitos aprovadores.46 Mas não deixa de ser um ardente defensor da idéia geral e de uma importância extrema, que liga a vida atual a uma série de existências.

45 O Pássaro.
46 Goethe parecia partilhar desta maneira de ver, quando exclamava em uma de suas cartas à encantadora senhora de Stein: “Por que o destino nos ligou tão estreitamente? Ah! em tempos passados, tu foste minha irmã ou minha esposa! Conheceste os meus menores traços, e espreitaste a mais pura vibração de minhas fibras, soubeste ler-me num olhar, a mim, que um olhar humano dificilmente penetra! (Revue germanique, dezembro de 1865). Victor Meunier não está longe de crer também no renascimento do homem na Terra: “A sorte dos que vierem depois de nós, diz ele, não me encontra indiferente, longe disto! Assim como não me está demonstrado que nós não nos sucederemos a nós mesmos.” (A Ciência e os sábios em 1865, 2o semestre.)

Depois de ter dito que a criança, vindo ao mundo, não é, como pretendia a escola de Locke, uma tábua rasa, e que é injuriar a Divindade supor que ela tire do nada novas criaturas, que embeleza ao acaso com seus dons, ou fere ao acaso com a sua cólera, Pierre Leroux conclui por estas palavras:

“Assim, é preciso que se admita necessariamente o sistema indeterminado das metempsicoses, ou o sistema determinado do renascimento na Humanidade, que eu sustento.47

“Estou longe de repelir de maneira absoluta o sistema de renascimento na Humanidade; mas a Humanidade teve um começo, posterior mesmo ao da maioria das espécies animais e vegetais que cobrem o nosso globo; a Humanidade terá um fim; e, desde que a alma não perece, é preciso que o ser permanente, o eu, mergulhe suas raízes alhures que não na Humanidade, e encontre seu desenvolvimento futuro alhures que não na Humanidade, forma transitória.”

As numerosas citações que faz o autor, e que estão longe de ser completas, provam quanto é geral a idéia da pluralidade das existências e que em pouco terá passado ao estado de verdade incontestável. Sobre outros pontos, ele se afasta completamente da Doutrina Espírita; estamos longe de partilhar sua opinião sobre todas as questões que trata em seu livro, notadamente no que concerne à Divindade, à qual ele atribui um papel secundário, e a natureza íntima da alma, cuja espiritualidade contesta. Seu sistema é uma espécie de panteísmo, que ladeia o Espiritismo, e parece ser um termo médio para certas criaturas quenão querem o ateísmo, nem o niilismo, nem o espiritualismodogmático. Por mais incompleto que seja, não deixa de ser um progresso notável sobre as idéias materialistas, das quais está muito mais afastado do que das nossas. Salvo alguns pontos muito controvertidos, a obra contém vistas muito profundas e muito justas, às quais o Espiritismo não poderá senão associar-se.
47 Da Humanidade.

R.E. , setembro de 1868, p. 375